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segunda-feira, 2 de março de 2020

Sem médicos cubanos, explodem mortes de bebês indígenas


Foto: MINISTÉRIO DA SAÚDE

Após atingir níveis historicamente baixos em um período que coincidiu com a execução do Programa Mais Médicos, a mortalidade de bebês indígenas voltou a subir em 2019 — depois da saída de médicos cubanos que atuavam pelo programa — e retornou aos patamares anteriores à iniciativa.
Dados do Ministério da Saúde obtidos pela BBC News Brasil com base na Lei de Acesso à Informação mostram que, entre janeiro e setembro de 2019 — último mês com estatísticas disponíveis —, morreram 530 bebês indígenas com até um ano de idade, alta de 12% em relação ao mesmo período de 2018.
Indígenas e especialistas no setor citam entre as causas para o aumento o fim do convênio entre o Mais Médicos e o governo de Cuba, no fim de 2018, e mudanças na gestão da saúde indígena no governo Jair Bolsonaro.
Logo no mês seguinte ao fim do convênio com Cuba, em janeiro de 2019, houve 77 mortes de bebês indígenas — o índice mais alto para um único mês desde pelo menos 2010, quando se inicia a série de dados obtida pela BBC News Brasil.
Os 301 cubanos contratados pelo programa respondiam por 55,4% dos postos de médico na saúde indígena. Desde a saída do grupo, o governo repôs a maioria das vagas com médicos brasileiros, mas muitos líderes comunitários dizem que houve uma piora nos serviços.
A principal causa das mortes dos bebês em 2019 foram algumas afecções originadas no período perinatal (24,5%), doenças do aparelho respiratório (22,6%) e algumas doenças infecciosas e parasitárias (11,3%). O índice de mortes de bebês indígenas em 2019 foi o maior desde 2012, quando houve 545 casos entre janeiro e setembro.
O Mais Médicos teve início no ano seguinte, em 2013. Entre 2014 e 2018, o indicador caiu para uma média de 470 mortes por ano.
Para calcular o índice de mortalidade infantil entre indígenas em 2019, seria necessário considerar o total de bebês nascidos no período — número ainda não disponível. Em 2016, o Ministério da Saúde lançou um programa para tentar reduzir esse índice em 20% até 2019. Naquele ano, havia 31,28 mortes de bebês indígenas por mil nascidos vivos — mais do que o dobro da média nacional (13,8). A maioria das mortes (65%) era causada por doenças e causas evitáveis.
O atendimento das comunidades nativas é uma atribuição da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde. A secretaria gere 35 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), responsáveis pelos cuidados de cerca de 765.600 indígenas em todo o país.
Entre 2018 e 2019, houve aumento na mortalidade de bebês em 18 desses distritos, e em cinco deles o índice mais do que dobrou. Os distritos com mais mortes de bebês foram Yanomami (97), Alto Rio Solimões (54) e Xavante (47).
A maior variação ocorreu no DSEI Bahia. Entre janeiro e setembro de 2019, 11 bebês indígenas com até um ano morreram na região, número quase quatro vezes maior do que o registrado no mesmo período de 2018 (3).
Sérgio Bute, indígena do povo pataxó hã-hã-hãe que preside o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) da Bahia, atribiu as mortes à saída dos cubanos e a problemas no transporte de pacientes e equipes de saúde. Ele diz à BBC News Brasil que a saída dos profissionais — 20 médicos cubanos atuavam no distrito — foi “um desastre grande”.
“Eles (cubanos) não faziam objeção, não criavam nenhuma dificuldade para ir na aldeia, conviver com a realidade. Com a saída deles, sentimos esse impacto”, afirma.
Desde o término do convênio, o governo promoveu três chamamentos para substituir os médicos cubanos por brasileiros. Bute diz que 17 dos 20 postos foram preenchidos e que o atendimento hoje está “melhorzinho”.
Mas ele afirma que vários médicos brasileiros evitam visitar as aldeias e não criam laços com as comunidades, o que prejudica a qualidade do serviço. A BBC News Brasil ouviu queixas semelhantes entre vários indígenas que participaram de um encontro de membros de 45 etnias na Terra Indígena Capoto Jarina, em Mato Grosso, em janeiro.
“Temos médicos brasileiros excelentes, mas também temos aqueles que aparecem no serviço uma vez por semana e vivem apresentando atestado”, diz Paulo Tupiniquim, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e membro do conselho de saúde do DSEI Minas Gerais e Espírito Santo.
“É uma postura completamente diferente da dos cubanos. Com eles não tinha tempo ruim: podia estar chovendo ou fazendo sol, eles tinham essa preocupação de levar o atendimento, de manter o contato com a população”, afirma.
Tupiniquim diz que os dados de mortes de bebês indígenas em 2019 “nos deixam horrorizados”. Ele afirma que “a saúde indígena sempre teve suas deficiências, mas, em 2019, com a mudança de gestão, a situação ficou pior em todos os aspectos”.
Em 12 de fevereiro, após vários protestos de indígenas, o Ministério da Saúde afastou a chefe da Sesai, a fisioterapeuta Silvia Waiãpi, e a substituiu por Robson Santos da Silva, que ocupava um cargo de diretor na secretaria. As manifestações também protestavam contra os planos do governo de municipalizar a saúde indígena — anunciados no começo de 2019 pelo ministro da Saúde, Luís Henrique Mandetta, mas depois descartada.
Questionado pela BBC News Brasil sobre a alta nas mortes de bebês indígenas no último ano, o ministério enviou uma nota na qual diz que os óbitos de 2018 e 2019 ainda estão sob apuração e que é precipitado compara-los.
O convênio com Cuba teve um papel central no programa Mais Médicos, lançado pelo governo Dilma Rousseff em 2013 para levar profissionais a áreas desassistidas, principalmente em periferias urbanas, cidades do interior e comunidades indígenas.
Antes do fim da parceria, em 2018, os cubanos respondiam por 51,6% dos 16.150 médicos do programa. Cuba encerrou o vínculo quando Bolsonaro, então presidente eleito, fez uma uma série de críticas ao governo cubano e à participação do país caribenho no Mais Médicos.
Bolsonaro dizia que os médicos cubanos trabalhavam em regime de escravidão, pois tinham de deixar as famílias para viajar ao Brasil e porque 70% de seus salários ficavam com o governo cubano. Ele questionava ainda a qualificação dos médicos cubanos, que eram dispensados de revalidar seus diplomas no Brasil para participar do programa. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro afirmou que passaria a exigir a revalidação para “expulsar” os cubanos do país.
A dispensa da revalidação também era criticada por associações médicas brasileiras, que cobravam o governo a rever a regra. Em 2017, porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a prática é legal.
Ao comunicar o término da parceria, o governo de Cuba criticou Bolsonaro por questionar “a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio das suas famílias, prestam serviços atualmente em 67 países”. A prestação de serviços de saúde é uma das principais fontes de receita de Cuba, que tem a maior relação de médicos por habitantes do mundo, segundo o Banco Mundial.
Com o fim do acordo, o país caribenho convocou seus médicos a deixar o Brasil entre 25 de novembro e 25 de dezembro de 2018. Parte do grupo, no entanto, permaneceu no país na esperança de ser recontratada.
Logo após o fim da parceria, ainda no governo Michel Temer, o Ministério da Saúde lançou um edital para tentar substituir os cubanos por médicos brasileiros. Boa parte das vagas foi preenchida, mas muitos selecionados desistiram. Desde então, houve outros dois chamamentos.
Sempre houve dificuldades para alocar médicos em comunidades indígenas. Em várias delas, os profissionais costumam ter de passar semanas nas aldeias, com acesso limitado a bens materiais.
Em dezembro, Bolsonaro assinou uma lei substituindo o Mais Médicos pelo programa Médicos pelo Brasil. A lei permite a readmissão de parte dos médicos cubanos que permaneceram no Brasil após o fim do convênio. O governo deve detalhar como se dará a readmissão nas próximas semanas.
Em nota à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde diz que há hoje 343 médicos atuando pelo Mais Médicos e 30 vagas desocupadas em 16 distritos indígenas.
“Além destes profissionais, outros 111 médicos atuam na saúde indígena por meio das entidades conveniadas. Assim, não há impacto significativo no atendimento por ausência de médicos, uma vez que o atendimento à população indígena é multiprofissional, ou seja, uma equipe de saúde continua visitando periodicamente os pacientes”, diz o comunicado.
Especialistas avaliam, porém, que a presença de médicos nas equipes pode fazer a diferença nos casos em que os quadros não sejam óbvios ou os pacientes já estejam em situação vulnerável, caso de bebês desnutridos. Nessas situações, afirmam que diagnosticar e tratar os doentes rapidamente pode impedir complicações que os levem à morte.
Indígenas e servidores do Ministério da Saúde ouvidos pela BBC News Brasil citaram ainda, entre as causas para o aumento nas mortes de bebês indígenas em 2019, mudanças ocorridas na Sesai após a posse de Bolsonaro.
Servidores da Sesai que não quiseram ser identificados disseram que a secretaria afastou vários técnicos experientes que eram considerados próximos da gestão anterior. Uma das pessoas exoneradas era a principal responsável pelas ações contra a mortalidade infantil, a nutricionista Janini Selva Ginani. Também foram substituidos os principais gestores dos DSEIs, que, por sua vez, afastaram muitos profissionais de saúde que atuavam nas comunidades.
Segundo servidores, as mudanças teriam provocado uma ruptura nas atividades e alijado pessoas cruciais para a continuidade dos trabalhos. A situação teria se agravado no início do ano quando empresas conveniadas que prestam serviços de saúde nos DSEIs anunciaram não ter recebido pagamentos do Ministério da Saúde e interromperam atividades.
Já o Ministério da Saúde diz que “não houve suspensão de pagamento às entidades conveniadas”. “Cabe ressaltar que os DSEIs têm repasses mensais garantidos para pagar contratações nos três primeiros meses, após esse período, os repasses passam a ser garantidos de forma trimestral. Contudo, as entidades possuem saldos para honrar os pagamentos de seus profissionais que atuam nos DSEIs, não havendo prejuízo ou interrupção nos serviços”, diz uma nota do órgão.
Em diferentes partes do país, porém, houve protestos em que funcionários das conveniadas cobraram o pagamento de salários atrasados. O impasse durou vários meses. O mês de maio, durante o imbróglio, registrou o maior número de mortes de indígenas de todas as idades em todo o ano: 305, número 15% maior que a média mensal de mortes até setembro (264,7).
No DSEI Bahia, onde houve o maior aumento no índice de mortes de bebês, 148 motoristas contratados para transportar pacientes indígenas e equipes de saúde deixaram de trabalhar em março de 2019, após a Sesai encerrar o contrato que regia o serviço. O grupo não retomou as atividades até hoje.
O presidente do Conselho Distrital de Saúde da Bahia, Sérgio Bute, diz que a função tem sido exercida de forma improvisada por 19 servidores públicos. Sem motoristas suficientes, diz ele, muitos pacientes deixaram de ser levados ao hospital, e as visitas de equipes de saúde às aldeias ficaram menos frequentes.
“Isso tem contribuído com a questão da mortalidade”, afirma. Ele diz que houve casos em que moradores dirigiram as picapes da Sesai para que pacientes pudessem ser atendidos na cidade.
O Ministério da Saúde afirma que o contrato foi encerrado ao fim de seu período de vigência. “O processo de licitação, seguindo recomendação do Ministério Público Federal, está em andamento. Enquanto isso, o DSEI Bahia disponibilizou servidores para realizar tal função em caráter temporário. Além disso, foi autorizada a contratação emergencial de motoristas e garantido o recurso para que o DSEI possa manter o atendimento adequado até a finalização da licitação para a contratação regular do serviço”, diz a nota oficial.
Os dados obtidos pela BBC News Brasil mostram apontam para uma melhora expressiva após a implantação do Mais Médicos, embora os indicadores continuassem abaixo da média da população brasileira. De 2007 a 2013, segundo uma reportagem publicada em 2014 pela BBC News Brasil com dados do Ministério da Saúde, 40% de todas as mortes indígenas no país eram de crianças com até quatro. Desde 2015, o índice caiu para menos de 30% e fechou 2019 em 28%. A média brasileira é de cerca de 4,5%.
Outros indicadores tiveram uma variação menor na época do Mais Médicos, como o percentual de mortes de indígenas por doenças infecciosas e parasitárias, consideradas evitáveis. O índice passou de 8,2%, em 2013, para 7,2%, em 2018, ante uma média nacional de 4,5%.
Especialistas atribuem as melhoras não só aos Mais Médicos, mas também ao aumento nos atendimentos realizados pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena. Encarregados da atenção primária, os grupos são compostos por outras categorias profissionais, entre as quais enfermeiros, nutricionistas e agentes indígenas de saúde e de saneamento.
Segundo um relatório da Sesai divulgado no início de 2019, a média de atendimentos realizados por essas equipes passou de 1,56 atendimento por habitante, em 2014, para 6,32, em 2017.
Professor de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista em saúde indígena, Douglas Rodrigues diz que, quando bem estruturada, a atenção primária é capaz de resolver até 85% dos problemas de saúde de uma comunidade. Em 2019, porém, com a saída dos cubanos e a redução no número de outros profissionais, Rodrigues afirma que o setor sofreu um “apagão”.
Para o professor, além de repor as equipes, é preciso investir na formação dos agentes indígenas de saúde e de saneamento. Segundo ele, embora a ampliação do número de profissionais na saúde indígena na última década tenha sido benéfica, esse aumento relegou os agentes indígenas ao segundo plano.
“Os agentes passaram a se dedicar a funções secundárias, como entregar remédios, quando a ideia é que eles façam a ponte entre as equipes e a comunidade e que tenham um papel central nas ações de prevenção e de promoção de saúde”, diz Rodrigues. Uma das principais atribuições dos agentes, segundo o médico, é promover uma alimentação de qualidade nas comunidades — fator que influencia vários indicadores de saúde.
Rodrigues afirma que, após um período de grandes avanços na saúde indígena, os dados se estabilizaram. Para ele, a continuidade da melhora depende, em parte, de uma melhor articulação entre o SUS (Sistema Único de Saúde) e os serviços de saúde indígena. Rodrigues afirma que também há margem para ações pontuais que reduzam os altos índices de mortes por causas evitáveis, como resfriados que viram pneumomia.
Um exemplo seria a distribuição de inaladores nas aldeias. “Há várias tecnologias simples que podemos incorporar e que poderiam nos ajudar muito”, afirma.

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