Abordar a trajetória de Beatriz Nascimento para a revista Eparrei! tem uma dupla exigência. É necessário indicar qual o propósito de um homem negro que pesquisa relações de gênero e raça. O encontro com o feminismo negro, com os textos de autoras ativistas brasileiras e estadunidenses, tem provocado uma viagem sem volta na minha construção de pessoa e na formação intelectual. Além disso, devo dizer que escrever acerca de uma mulher negra é um exercício de interagir com sua voz, e não tentar sobrepô-la ou substituí-la (o que tem sido habitual numa sociedade racista e sexista). Não conheci pessoalmente Beatriz Nascimento e a pesquisa que realizo tem como cerne a sua obra, ou seja, seus textos escritos (alguns inéditos) e narrados (a exemplo de comunicações transcritas ou da participação em documentários). Os levantamentos são efetuados no Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, no Arquivo Nacional e com a colaboração da família de Beatriz Nascimento e de acervos particulares de ativistas negras(os). Cabe afirmar que o presente artigo não resulta, de forma alguma, de um olhar distante e impessoal. Estou diante de alguém que me convence, me comove e, poucas vezes, me leva a discordâncias.
Por Alex Ratts
Caminhos percorridos
Maria Beatriz Nascimento nasce em Sergipe, em 12 de julho de 1942, filha de Rubina Pereira do Nascimento e Francisco Xavier do Nascimento, um pedreiro e uma “dona de casa”, que tiveram, ao todo, dez filhos. A família migra para a cidade do Rio de Janeiro em 1950. Enquanto estudiosa, pesquisadora, ativista e autora, Beatriz pode ser focalizada, sobretudo, entre 1968 e 1971, quando cursa História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. No mesmo período, faz estágio em Pesquisa no Arquivo Nacional, com orientação do historiador José Honório Rodrigues. Posteriormente, torna-se professora de História da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.
Em 1974, Beatriz Nascimento publica Por uma história do homem negro (Revista de Cultura Vozes. 68(1), pp. 41-45), um texto/proposição que tem como tema principal a flagrante despreocupação da academia brasileira com os temas vinculados à história da população negra, no máximo, reduzidos aos genéricos estudos da escravidão. Neste artigo, Beatriz parte de uma forte motivação que excede preocupações de uma pesquisadora restrita aos muros universitários, se pronuncia como historiadora negra, portanto como vinculada diretamente ao chamado “objeto de estudo”. No mesmo ano, a referida revista veicula outro artigo seu (Negro e Racismo, Revista de Cultura Vozes. 68 (7), 1974, p. 65-68) no qual a autora comenta e reage a idéias recorrentes na sociedade brasileira e, inclusive, no pensamento acadêmico de que há uma única maneira de ser negro, de definir a “cultura negra” e de reduzir à participação negra na formação brasileira a “contribuições”.
Nesse período, Beatriz Nascimento participa no Rio de Janeiro de um grupo de ativistas negras(os) que acabam por formar vários núcleos de estudos no estado, dentre eles o Grupo de Trabalho André Rebouças na Universidade Federal Fluminense, do qual ela se torna orientadora. O GTAR se constitui num grupo de estudantes negras(os) de vários cursos que tinha, dentre seus objetivos, o propósito de introduzir e ampliar principalmente na universidade conteúdos acerca das relações raciais no Brasil, almejando o envolvimento do corpo docente (GTAR – Em busca de um espaço. Estudos Afro Asiáticos 8-9, 1983). Na Quinzena do Negro, realizada em outubro de 1977, na Universidade de São Paulo, Beatriz Nascimento aparece como conferencista, já em processo de reconhecimento público de seus estudos acerca da questão étnico-racial, em especial dos quilombos.
No ano seguinte Beatriz dá início ao curso de especialização (pós graduação latu sensu) em História na Universidade federal Fluminense, que conclui em 1981, com a pesquisa Sistemas alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. Este projeto obtém financiamento parcial da Fundação Ford e da Casa Leopold Senghor do Senegal e tem como objetivo principal estabelecer a possível continuidade dos quilombos com favelas em determinadas cidades brasileiras, a exemplo do Rio de Janeiro. Por força de restrições de financiamento e da própria extensão do tema, Beatriz reduz hipóteses e se detém na viagem a Angola (onde se situavam os quilombos africanos) e no trabalho de campo em áreas passíveis de identificação como “antigos quilombos”, especialmente em Minas Gerais (Kilombo e memória comunitária – um estudo de caso. Estudos Afro-Asiáticos 6-7, pp. 259-265, 1982).
Territorialidade, corporeidade e identidade
Inúmeros temas “acadêmicos” nascem fora dos muros universitários ou ganham contornos diferenciados quando desenvolvidos por sujeitos diretamente envolvidos com a temática: gênero discutido por sobretudo mulheres, raça pensada por sobretudo negras(os), etc.. É nesse contexto que ocorre o (re)aparecimento do quilombo. Para os movimentos negros de vários períodos do século XX o quilombo era um dos grandes temas: permeava a ação política, a pesquisa acadêmica e as atividades artísticas. Quilombo era palavra franca entre ativistas dos movimentos negros na década que se estende entre 1978 e 1988 (O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora Nos. 6-7, pp. 41-49, 1985).
Beatriz Nascimento, sobretudo no filme Ori, alia a reflexão acerca de territorialidade com corporeidade. Para ela o corpo negro se constitui e se redefine na experiência da diáspora e na transmigração (por exemplo, da África para a América, da senzala para o quilombo, do campo para a cidade, do Nordeste para o Sudeste). Neste tema, a encontramos discorrendo acerca da sua própria imagem, da “perda da imagem” que atingia africanas(os) escravizados(as) e descendentes em diáspora. O corpo negro pode ser, então, que procura e constrói lugares de referência transitórios (o baile black, a escola de samba) ou duradouros (a casa de culto afro-brasileiro ou o quilombo). A chamada “cultura negra” recriada estendia-se pelo que ela denominava de transatlanticidade nas relações América, Europa e África.
Beatriz também escreveu acerca da situação das mulheres negras no Brasil, de sua condição social inferior devida ao amálgama de heranças escravistas com mecanismos racistas (A mulher negra no mercado de trabalho. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 25/07/1976) e à perpetuação de estereótipos no imaginário nacional, especialmente no cinema (A senzala vista da casa grande. Jornal opinião, 5 de outubro de 1976, p. 20-21). É no artigo A mulher negra e o amor (Jornal Maioria Falante, No 17, fevereiro a março de 1990, p. 3.) que Beatriz Nascimento enuncia a discriminação de raça e de sexo que atinge as mulheres negras de vários ângulos e as marca de maneira específica o campo afetivo. Em 1987 ela é agraciada com o título de Mulher do Ano 1986, pelo Conselho Nacional de Mulheres no Brasil.
Esquecimento e rememoração
Beatriz Nascimento é assassinada em 28 de janeiro de 1995, quando defendia uma amiga que tinha um companheiro violento. Cursava, então, mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ. Seus projetos foram interrompidos abruptamente. Apesar de ter uma produção que se estende ao longo de 20 anos, entre 1974 e 1994, e de alcançar relativa visibilidade intelectual e política em vida, a exemplo do que acontece com Lélia Gonzalez, Eduardo Oliveira e Oliveira, Hamilton Cardoso e outras(os) de sua geração, Beatriz Nascimento não se torna uma autora reconhecida nos círculos hegemônicos dos estudos raciais no Brasil. Lida, comentada e rememorada sobretudo por autoras(es) negras(os), a “volta” aos seus textos não se deve fazer somente por um esforço de reverência.
Há que se reconhecer que, como uma das protagonistas, ela palmilha, sedimenta e constrói em grande parte o espaço que hoje alcançamos nas questões étnico-raciais: a realização e ampliação dos estudos raciais por pesquisadoras(es) negras(os); a presença negra discente e docente nas universidades; a história da população negra brasileira e seus vínculos diversos e contraditórios com as sociedades africanas; a interrelação entre temas como identidade, raça, sexo, corpo, cultura e espaço; a correlação, nem sempre afinada, entre pensamento e ativismo negros. Para criticá-la em sua busca de uma verdade histórica (que é, de fato, uma disputa de interpretações com a historiografia hegemônica) e do tratamento aparentemente essencialista de certos temas (que ela muitas vezes relativiza), devemos lê-la e ouvi-la em primeiro lugar.
Aquela que, em suas palavras dizia “eu sou atlântica”, que se sentia “alta” na Serra da Barriga e cujo “espírito inquieto” caminhava por “sendas errantes”, aquela que escrevia com sensatez e com veemência, torna-se uma referência para quem trilha em se desloca entre raízes e rotas correlatas, merecendo uma homenagem à sua altura: o reconhecimento da obra, dos posicionamentos, das idéias e da pessoa.
• Professor do Instituto de Estudos Socioambientais da UFG, coordenador do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Descendentes (NEAAD/UFG).
•• Publicado originalmente em: Revista Eparrei, No. 8. Santos: Casa de Cultura da Mulher Negra, 2005, p.49 – 51.