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segunda-feira, 5 de julho de 2021

O que diz o projeto que muda a demarcação de terras indígenas

FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS - 24.JUN.2021                                  

INDÍGENA EM PROTESTO POR DEMARCAÇÃO DE TERRAS EM FRENTE AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM BRASÍLIA


Por: Mariana Vick  Nexo Jornal


A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados concluiu nesta terça-feira (29) a votação do projeto de lei 490, que muda regras para a demarcação de terras indígenas e abre essas áreas para a exploração comercial. O texto vai ao plenário e, se aprovado, segue para o Senado.

Considerada por organizações indigenistas um dos maiores ataques recentes aos povos originários, a proposta legislativa foi aprovada sob protestos em Brasília. Indígenas disseram que o projeto fere a Constituição e criticaram a falta de participação no debate do texto.

Saiba o que há no projeto de lei, quais são os argumentos a favor e contrários a ele, o que diz a Constituição sobre as terras indígenas e qual o caminho do texto no Congresso a partir de agora.

O que há no projeto de lei

O projeto de lei 490 foi apresentado em 2007 pelo deputado falecido Homero Pereira (antigo PR-MT), propondo mudanças no Estatuto do Índio para tirar a competência de demarcar terras indígenas do Executivo — como sempre foi — e atribuí-la ao Congresso Nacional.

O debate sobre o tema foi superado dentro da Câmara com o tempo, mas nesses anos projetos de lei com propostas diferentes para a demarcação foram anexadas ao texto original. A página do projeto 490 no site da Câmara mostra que há 13 propostas apensadas a ele.
FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS - 07.FEV.2018

 
O DEPUTADO FEDERAL ARTHUR MAIA (DEM-BA) EM ENTREVISTA A JORNALISTAS EM BRASÍLIA

O projeto 490 e seus apensos foram analisados pelas comissões de Direitos Humanos e de Agricultura e Pecuária da Câmara. Os deputados da primeira comissão rejeitaram o texto, mas o segundo grupo apresentou um substitutivo, que está sendo analisado na CCJ agora.

O projeto está sob relatoria de Arthur Maia (DEM-BA). A proposta elaborada pela comissão de Agricultura e Pecuária abre as terras indígenas para atividades econômicas e inclui mudanças como a adoção de um marco temporal para a demarcação de terras.

A primeira votação na CCJ aconteceu no dia 23 de junho passado, quando os deputados aprovaram o texto-base do projeto. Na terça-feira (29/06/2021), o grupo votou os destaques, que são trechos à parte. Nessa votação, os deputados podem confirmar, alterar ou excluir partes do texto original.

Os deputados favoráveis ao projeto 490 na CCJ afirmam que a proposta deve resolver casos de "insegurança jurídica" (grifos nossos) em demarcações e promover dinamismo econômico nessas áreas. Opositores, porém, dizem que as mudanças do texto inviabilizam a demarcação de novas terras.

Quais as principais mudanças

MUDANÇAS NO PROCESSO

O projeto propõe mudanças no processo de demarcação, como a manifestação de partes interessadas e a participação de estados e municípios em qualquer etapa do processo. O processo hoje permite que os interessados se manifestem, mas apenas no início da análise, para garantir celeridade no trabalho.

MARCO TEMPORAL

O projeto propõe a tese do marco temporal, que defende que o direito à terra indígena só deve ser garantido se ficar comprovado que na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, a área estava ocupada por povos tradicionais ou sob reivindicação deles.

USUFRUTO EXCLUSIVO

A Constituição afirma que cabe aos indígenas “o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes”. O projeto 490 diz que o usufruto não abrange áreas “de interesse público da União” e permite que o poder público instale obras e crie vias nessas áreas, de acordo com o interesse público.

ABERTURA DE TERRAS

O projeto também permite “contratos que visem à cooperação entre índios e não índios para a realização de atividades econômicas” em terras indígenas. A Constituição permite que indígenas desenvolvam certas atividades em sua terra, mas não a cooperação com terceiros, dado que o usufruto é exclusivo.

RESERVAS INDÍGENAS

O projeto também trata de reservas indígenas, um tipo de terra específico: elas não são de ocupação tradicional, mas a União as destina à posse permanente desses povos. O texto afirma que, em caso de “alteração dos traços culturais da comunidade” que vive ali, o Estado pode remover os moradores da área.

POVOS ISOLADOS

O projeto muda a política com povos indígenas isolados, permitindo a aproximação “para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”. Os povos isolados não interagem com outros por decisão voluntária ligada à autoproteção. O país segue hoje uma política de não contato.

O peso de uma decisão do Supremo

O projeto 490 também adota como regra geral para a demarcação de terras indígenas elementos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal após o julgamento da definição da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Ocorrido em 2009, o julgamento se tornou emblemático.

A decisão do STF na época definiu 19 condicionantes para a demarcação da terra indígena, que havia sido levada à Justiça por causa de conflitos entre os povos que iriam viver em Raposa Serra do Sol e produtores rurais que ocupavam a área.

Entre as condições para demarcação, está a proibição da ampliação da terra indígena, a permissão para instalação de obras na área e determinações como a de que o usufruto exclusivo da região pode ser relativizado em caso de interesse público, como diz o projeto 490.

FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS - 10.FEV.2019
 
                  
CRIANÇAS DA ETNIA MACUXI BRINCAM EM RIO NA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL, EM RORAIMA

A tese do marco temporal também se originou da decisão do Supremo. O relator do projeto 490, Arthur Maia, usa o julgamento para justificar a proposta de novas regras para demarcação, como mostra o texto de seu parecer, disponível no site da Câmara.

Em 2013, o Supremo afirmou que esse e outros condicionantes citados no julgamento de Raposa Serra do Sol não se aplicam a outros casos de demarcação. Organizações indigenistas usam isso para dizer que o projeto 490 não pode usá-los para justificar as mudanças que propõe.

Em 2021, o marco temporal tornou-se tema de outro julgamento no STF. A decisão de agora terá repercussão geral (isto é, será aplicável a todos os casos). Em carta, profissionais do direito pediram que o projeto 490 fosse votado depois da decisão, mas não foram atendidos.

O que diz a Constituição

O principal texto que trata da demarcação de terras no país é a Constituição Federal. O artigo 231 afirma que as áreas tradicionalmente ocupadas por indígenas são de sua posse permanente, inalienáveis e indisponíveis, e os direitos desses povos sobre elas são imprescritíveis.

As terras indígenas, segundo o texto, são aquelas habitadas em caráter permanente, usadas para suas atividades produtivas, essenciais para preservar recursos ambientais necessários para seu bem-estar e para sua reprodução física e cultural, segundo seus costumes e tradições.
                                        

O texto define que é dever da União demarcar e proteger essas terras. Determina também que o usufruto de seus recursos é exclusivo dos indígenas, que as áreas são públicas — elas não podem ser vendidas — e que seus habitantes não podem ser removidos dali.

O direito de indígenas à posse e ao uso exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam baseia-se na noção de direito originário — ou seja, um direito anterior à criação do próprio Estado, decorrente do fato de que os indígenas foram os primeiros ocupantes do Brasil.

FOTO: FELIPE WERNECK/IBAMA
                    
TERRA INDÍGENA PIRIRI, EM RORAIMA

Além de garantir a reprodução dos modos de vida indígenas, a demarcação de terras contribui para a preservação ambiental e para o ordenamento fundiário — que pode inibir conflitos por terra e organizar o atendimento aos povos indígenas em estados e municípios.

Menos de 2%

Foi quanto houve de desmatamento em terras indígenas na Amazônia em 2015, enquanto a média da região foi de 19%, segundo estudo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia)

O projeto de lei 490 muda o que está na Constituição quando relativiza o usufruto exclusivo nessas áreas e adota o marco temporal para definir o que é terra indígena. Por se tratar de projeto de lei, o texto não pode propor mudanças na Constituição, segundo críticos.

Organizações indigenistas afirmam ainda que o direito à terra é cláusula pétrea, que não pode sequer ser alterada por emenda constitucional. Os direitos e garantias individuais e outras cláusulas pétreas só são alterados com a promulgação de nova Constituição, segundo a lei.

O debate sobre falta de participação

Com a discussão do projeto 490 na Comissão de Constituição e Justiça, indígenas organizaram uma série de protestos em frente à Câmara nas últimas semanas de junho para pressionar os deputados a tirarem da pauta as mudanças na demarcação de terras, mas as ações foram reprimidas.

Cerca de 700 manifestantes que estavam nos arredores do Congresso no dia 22 de junho, dia anterior à votação do texto-base do projeto 490, foram reprimidos pela Polícia Militar com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Indígenas foram feridos e revidaram com flechas.

O grupo de manifestantes faz parte do acampamento Levante pela Terra, que desde o início de junho está em Brasília para protestar contra a violência em seus territórios e o que consideram ataques a seus direitos, do projeto de lei 490 à tese do marco temporal a ser votada no STF.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS
                         

INDÍGENA TENTA FUGIR DE BOMBA LANÇADA PELA POLÍCIA

No dia 23 de junho passado, quando a CCJ votou o texto-base da proposta, o grupo foi de novo à Câmara dos Deputados para ser ouvido. Os indígenas, porém, foram impedidos de entrar, e acompanharam as discussões do lado de fora do prédio, como mostram vídeos nas redes sociais.

O episódio reavivou críticas à falta de participação no debate da CCJ. Em requerimentos nas últimas semanas, deputados da oposição pediram que a comissão realizasse audiências públicas para o PL 490, contando com a presença de indígenas, mas a pauta seguiu para votação.

A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), única indígena da Câmara, afirmou na sessão da CCJ no dia 23 de junho que a Casa deveria consultar os povos tradicionais antes de votar o projeto, como determina convenção internacional assinada no país, mas o pedido não foi atendido:

Na terça-feira (29 de junho), indígenas organizaram protestos contra o projeto 490 em cidades como Rio de Janeiro, onde interditaram a Radial Oeste, e em São Paulo, onde fecharam a rodovia Régis Bittencourt. Em Brasília, eles não puderam entrar na sessão da CCJ.

O país é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que determina que todas as medidas legislativas relativas aos direitos indígenas devem ser aprovadas apenas depois de consulta aos povos afetados. Ratificada pelo Congresso em 2022, a convenção tem força de lei dentro do Brasil.

O que é a Comissão de Constituição e Justiça

Considerada uma das mais importantes da Câmara, a Comissão de Constituição e Justiça é responsável por avaliar a legalidade de projetos de lei, PECs (propostas de emenda constitucional) e quaisquer outras propostas legislativas antes de irem a plenário.

A comissão é presidida desde fevereiro por Bia Kicis (PSL-DF), deputada bolsonarista conhecida pelo posicionamento radical à extrema direita e investigada pelo STF no inquérito das fake news. Outros 65 deputados fazem parte da comissão.

FOTO: MARYANNA OLIVEIRA/CÂMARA DOS DEPUTADOS
                        
A DEPUTADA FEDERAL BIA KICIS (PSL-DF) DURANTE SIMPÓSITO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

Com a aprovação dos destaques da CCJ, o projeto 490 segue no Congresso. O texto precisa ter urgência aprovada pelos deputados para ser avaliado no plenário da Câmara. Caso passe, será enviado ao Senado. Em caso de mudanças, o texto volta à Câmara e segue para sanção do presidente.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que analisaria o projeto em reunião com líderes da Casa, segundo o jornal Folha de S.Paulo. Atendendo à oposição, ele prometeu criar um grupo de trabalho para analisar a proposta.

O projeto 490 foi aprovado em um momento em que o governo federal, com Jair Bolsonaro, e o Congresso afrouxam a proteção ambiental e atacam direitos indígenas. Em 2021, a Câmara aprovou PLs controversos, como o do licenciamento ambiental, entre outros.

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